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sábado, dezembro 22, 2012

Antes e depois do fim

Abriu lentamente a janela, com o receio de encontrar tudo o que não queria ver na primeira fresta de luz. E luz foi a primeira coisa que viu. Um céu azul e brilhante dava um espetáculo para todos que tiveram a coragem de olhar além das cortinas de ferro. Descobriu que não só havia pessoas abrindo as janelas, mas com outras já tinham tomado as ruas. Caminhavam sem mesmo perceber o milagre que ele parecia estar presenciando. A vida seguia seu rumo, buzinas, vozes, ranger de portas abrindo... O dia vinha anunciar que não só o fim do mundo não havia chegado, mas especialmente que a vida precisava ser celebrada. Decidiu que seria sim o fim, mas de toda coisa que o afastasse da coragem de viver a vida. Abriu mais ainda a janela e gritou. E gargalhou. E o mundo em que vivera até o momento chegava ao fim ali.

domingo, setembro 09, 2012

Onde foi que eu deixei

Começou com um buraco, um bem pequeno que mais parecia uma toca de rato. Depois vieram os outros. E foi-se embora a grama. E vieram abaixo as paredes. Pás, martelos, picaretas. Usou de tudo para cavar ainda mais fundo. Mas de nada adiantou. Não lembrava onde tinha enterrado seus sonhos.

domingo, setembro 02, 2012

21 dias

A solidão o aproximou daquilo que tinha de mais precioso na vida, suas verdades. Podiam ser verdades só suas, mas conseguiam tirar sua vida da inércia e fazer correr mais rápido o sangue em suas veias. Desligou o celular, cancelou a conta da internet. Ficou só consigo e com seus amigos mais íntimos, seus escritores preferidos, e com as lembranças de tudo que já vivera de mais lindo e poético. Foi como um período de desintoxicação. Após 21 dias acordou acreditando que ainda era possível fazer verso dos seus dias.

sexta-feira, agosto 24, 2012

Tão perto, tão longe

Acordou com um bilhete em sua mesa de cabeceira. Abriu os olhos e ali estava a folha branca, dobrada ao meio, com duas palavras escritas "para você". Não sabia como tinha ido parar ali. Sentou-se na cama, passou a mão pelos cabelos, tomou o papel nas mãos e abriu-o. Um parágrafo, no meio da página, dizia: "Já faz tempo desde a última vez que nos vimos. Mas ainda, quando fecho os olhos, vejo os seus, fixos em mim, como nunca alguém havia me olhado antes. E ainda sinto seu cheiro em todo lugar, carregado de lembranças só nossas. Já faz tempo, mas suas palavras de despedida ecoam na minha mente como um disco arranhado ou uma música na função repeat. Já faz tempo, mas parece que foi ontem. Já faz tempo, em outro lugar, numa língua qualquer, mas eu sinto como se tivesse sido agora, há dois minutos, em um idioma que só nós dois entendemos. Já faz tempo, mas mesmo longe encontrei um meio de dizer hoje. Já faz tempo, mas desaprendi a contar os dias. Já faz tempo, mas ainda há tempo. Estou te esperando lá fora. Não demore." Acabou, como sempre, com uma letra e um ponto final.

sábado, julho 21, 2012

Sobre o fim

Beijou suavemente seus lábios para que não despertasse do sono que o embalava. Sem uma palavra se despediu, guardando somente as doces lembranças no espaço mais terno da memória. Antes de fechar a porta, fez a promessa de não ficar triste pelo abandono. Optou por sentir, mesmo que apenas por um breve momento, a emoção do amor que dura uma vida inteira.

Alma de palhaço

Vestia terno e gravata, mas por baixa da cara de bom executivo morava mesmo o coração de um palhaço. Na última página da agenda corporativa rabiscava caretas engraçadas que via nos corredores cinzas do escritório. Carregava no bolso um apito, para que sempre que uma situação adversa roubasse o seu sorriso, ele pudesse sentir a forma que o faria rir de novo. Levava na alma a felicidade, mas trazia no rosto o semblante sério e distante que o mundo queria ver em um homem de negócios. Guardava na gaveta seu maior sonho, o nariz de palhaço. No fim, era o que ele queria ser de verdade.

sexta-feira, maio 04, 2012

Mundo, mundinho, mundão

Caberiam meus sonhos todos numa única esperança? E minhas lembranças todas numa única memória? Qual o tamanho do espaço para se guardar saudade? Qual o prazo de validade para guardar uma felicidade? Em que buraco fundo se escondem todos os medos? E quão pequena deve ser a área reservada para as decepções? Quantas músicas ainda me farão chorar? E com quantos comerciais ainda vou me emocionar? Quantos dias não vou ver passar porque trabalhei demais? Quantas imagens deixarei de ver porque estava olhando demais o celular? Para cada pergunta, há sempre um mundo de respostas. Um mundo daqueles que não cabe nessa folha de papel. Um mundo daqueles que não cabe num mundo inteiro. Um mundo daqueles que permite ter quantos sonhos quiser ter. Um mundo cheio de mundo. Dentro de cada um. Dentro de mim. Dentro de cada pergunta. Tem sempre um mundo de perguntas. E vários mundos de respostas. Que mundo!

domingo, abril 22, 2012

De onde vem

Que me rasguem o peito e deixem sair as palavras. Ao contrário do que dizem, elas não moram no cérebro e sim no coração. Se um poeta tem o coração na ponta do lápis é porque é a emoção quem cria - a razão só conduz o traçado.

domingo, abril 08, 2012

Despedida

Um rompimento sem exageros
Para alguns, só questão de momento
Incompatibilidade de gênio, outros dirão
Para quem vai, é um misto de alívio e solidão
Pra quem fica misturam-se o vazio e a gratidão
Fotos, roupas, cartas
As bagagens vão se multiplicando pelo chão
Mas as lembranças não se vão
Oito anos não cabem em caixas

domingo, março 11, 2012

Conexões

No meio da praça tinha uma estátua. E do lado da estátua tinha um flautista.
Em frente à praça, tinha um moço. E o moço olhava e ouvia o flautista com os olhos cheios de lágrimas.
Porque dentro do moço havia um coração solitário. E dentro do coração vazio o som da flauta vibrava. E dentro da flauta, o sopro triste do flautista se transformava.

quinta-feira, março 01, 2012

Quando tempo dura um segundo

Uma janela aberta, um céu desnudo, mostrando todos seus detalhes para quem quer ver. Uma música suave ao fundo, um cheiro de felicidade pelo ar. Dois olhos perdidos em outros dois que buscam cumplicidade e companhia, mesmo que seja só por um momento. O toque suave e quente, duas bocas que se unem, dois corpos que se atraem. O mundo lá fora não mais existe. As estrelas são testemunhas caladas de uma noite sem pressa de acabar, sem compromisso de continuar. Pelo menos só por hoje.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Bem vindo

Podia ouvir passos. O ambiente estava escuro, mas era possível saber que tratava-se de um espaço grande. À medida em que se acostumava à escuridão podia saber que havia muitas cadeiras. E um palco. Sim, definitivamente havia um palco. E os passos? Eram os seus. Havia tanto tempo que não prestava atenção em si mesmo que tinha esquecido seus próprios sons. A penumbra já não incomodava mais. Pisou mais forte para se reconhecer. E mais uma vez. Bateu palmas, respirou fundo. Passou a mão pelos cabelos e depois pelo corpo. Sim. Estava vivo. De novo. De volta. Podiam abrir as cortinas.